Vinde, Espírito Santo!
Chegamos ao Pentecostes deste ano, certamente ainda mais esperançados no poder recriador do Espírito Divino. Lembramos os cinquenta dias depois da Páscoa antiga, em que o povo comemorava a chegada ao Sinai. Aí recebera a antiga Lei, também entre sinais fortes da presença divina.
Celebramos hoje a lei nova do Espírito, em que tudo se cumpre finalmente, como aconteceu em Cristo. O «rumor semelhante a forte rajada de vento», que encheu toda a casa onde os apóstolos se encontravam», é o que podemos captar igualmente, com o ouvido interior que o “Efetá!” batismal nos abriu.
Por isso, só celebramos com verdade e proveito próprio e alheio as festas litúrgicas quando lhes guardamos o significado íntimo e vital que transportam. Assim a Páscoa, ressuscitando com Cristo de tanta morte de alma; assim a Ascensão, querendo mesmo voltar com Ele para o Pai, cumprindo a sua vontade; assim o Pentecostes, deixando que o Espírito divino nos recrie totalmente – a nós e ao mundo a que chegarmos.
O Espírito divino, não meramente o nosso - o nosso, com os possíveis ideais e propósitos, que, mesmo bons, não chegariam. A verdade bíblica alerta-nos para o que a experiência humana confirma. O velho desencanto do Eclesiastes, traduzido na frase que sabemos: «Vaidade das vaidades, tudo é vaidade» (Ecl 1, 2), indica a vanidade do que não se sustenta por si e encadeia ilusão com desilusão. Dito doutro modo, a humanidade é tão originalmente boa como realmente frágil e muito contraditória, quando se pretende bastante.
Boas intenções não bastam. Mesmo agora, quando nos queremos refazer como sociedade, face à pandemia que tanto nos transtornou a saúde, a convivência, a economia e tudo o mais. É natural que a urgência de soluções, no plano nacional e internacional, ocasione medidas mais solidárias e suscite declarações generosas. Como é de reconhecer e agradecer tanta dedicação demonstrada nos vários domínios sociais, públicos ou particulares, para proteger as vidas e garantir a saúde e a subsistência das populações. É justo, muito justo, que o façamos.
Porém, a história lembra que em tempos de guerra sempre se aspira pela paz e em tempos de catástrofes sempre se insiste em preveni-las… Mas a memória é curta e as ilusões regressam, facilmente demais, tragicamente demais. Valha-nos o Espírito Divino, que não se cansa de nos mover para o bem.
Retenhamos dois pontos do que ouvimos, tão convergentes como são. A realidade divina é essencialmente comunitária. E só a partir dela nos concluímos como realidade humana, ultrapassando a divisão, que é o pecado. Pecado que radica na recusa de viver em comunhão, com Deus e com tudo a partir de Deus, Fonte inesgotável de vida convivida.
Assim nos segreda a natureza, apesar de tão contrariada no seu impulso convergente. Assim nos restaura Jesus Cristo, que em tudo manifestou a união indestrutível com Deus Pai. Convivência que deles faz um só e unidade que se expande pelo Espírito, porque o amor é sempre criativo. O espírito de Deus que paira sobre a água inicial donde surgimos é agora o Espírito que se faz língua de fogo para tudo recomeçar no Pentecostes, irradiante e puro. E para tudo ser finalmente comunhão, como nos lembrou São Paulo: «Em cada um se manifestam os dons do Espírito para o bem comum».
Daqui resulta o que ouvimos no Evangelho e na precisa sequência como está: O Ressuscitado no meio de nós, a paz nele alcançada, o sopro do Espírito que nos dá e o perdão dos pecados. Só assim, anulando no mais íntimo de cada um tudo o que nos separa de Deus, dos outros e da realidade total.
A obra do Espírito é a restauração de tudo, como começou em Cristo, na sua união indissolúvel com Deus Pai. União que connosco compartilham, pelo dom do Espírito enviado. Nele alcançaremos uma humanidade à maneira da Trindade, na filiação divina em que Cristo nos inclui, na vida unitrinitária em que tudo se consuma e a própria criação se recupera e salvaguarda. Como escreveu São Paulo, numa visão profunda: «Pois até a criação se encontra em expetativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19).
Já Hans Urs von Balthasar, reputado teólogo, advertiu: «Não compreenderemos nada do acontecimento do Pentecostes, que nos descrevem os Atos dos Apóstolos, se não tivermos sempre presente que o Espírito que desce sobre a Igreja é tanto o Espírito de Jesus Cristo como o de Deus Pai; dizendo com outras palavras, é o Espírito do seu amor recíproco até à total inabitação de um no outro, amor que tem ao mesmo tempo o seu fruto, a terceira pessoa em Deus. Na criação temos um símbolo recôndito deste amor… » (cf. Luz de la Palabra, Madrid, Ediciones Encuentro, 1998, p. 72). Só a comunhão que há em Deus nos recria na comunhão total.
Creio que tudo isto é de grande atualidade e urgência. Sofre o mundo a presente pandemia, com uma globalidade e rapidez inéditas na sua transmissão nefasta. Nem a resolveremos de vez, mesmo contando com tanta dedicação solidária e com tanta aplicação científica, ambas absolutamente louváveis, se não atuarmos com atenção e cuidado, para prevenir alastramentos e alterarmos condutas. Sobretudo, não evitaremos trágicos retornos, desta ou doutra congénere, se não mudarmos profundamente a nossa relação com a natureza, o meio ambiente e a própria humanidade no seu conjunto.
Quando há cinco anos o Papa Francisco nos ofereceu a encíclica Laudato si’, sobre o cuidado da casa comum, realizou algo de verdadeiramente profético, quer na denúncia do que não está nada bem, do ponto de vista ambiental, como no modo de ficar melhor e bem melhor, no sentido uma ecologia integral, em que tudo se respeite para que tudo conviva.
É também ele a radicar na Trindade divina e na ação do Espírito o princípio, o meio e o fim do que se deve fazer e refazer. Escutemo-lo neste luminoso passo: «Para os cristãos, acreditar num Deus único que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém em si mesma uma marca propriamente trinitária. São Boaventura chega a dizer que o ser humano, antes do pecado, conseguia descobrir como cada criatura “testemunha que Deus é uno e trino” […]. As Pessoas divinas são relações subsistentes; e o mundo, criado segundo o modelo divino, é uma trama de relações. […] Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim, assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a criação. Tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade» (LS, 239-240).
Meditemos nestas palavras papais, tão profundamente teológicas como inteiramente operativas. O Pentecostes recebe-se e ativa-se assim: O Espirito Santo, como só Ele o consegue, recupera-nos e inclui-nos na filiação divina, que em Cristo se oferece. Esta filiação realiza-nos na comunhão perfeita com Deus Pai e com tudo o que manifesta o seu poder criador. Saber, testemunhar e concretizar tão grande verdade na relação com Deus, com os outros e a criação inteira é levar o Pentecostes recebido ao universo que o espera. É connosco agora, começando pelo que esteja mais perto, modo cristão de chegar mais longe.
Invoquemo-lo, hoje como sempre, com palavras de esperança inesgotável: «Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor. Enviai, Senhor, o vosso Espírito e tudo será criado, e renovareis a face da terra!»
Sé de Lisboa, Domingo de Pentecostes, 31 de maio de 2020
+ Manuel, Cardeal-Patriarca