“Escutar a Palavra do Senhor”
Catequese do 2º Domingo da Quaresma
Sé Patriarcal, 20 de Março de 2011
Introdução
A principal expressão desta revelação é a sua Palavra: Deus fala ao seu Povo. A Exortação Apostólica Post-Sinodal “Verbum Domini”, afirma logo no início: “A novidade da revelação bíblica consiste no facto de Deus se dar a conhecer no diálogo que deseja ter connosco”[1]. Um Deus que se exprime no diálogo é um Deus comunhão. Deus está com os homens na verdade do seu próprio mistério íntimo: Ele é comunhão de Pessoas. E a Palavra que dirige ao seu Povo, em linguagem humana, é a Encarnação da Palavra eterna de Deus, o Logos. Sempre que nos fala, convida-nos a entrar na sua intimidade, na comunhão das pessoas divinas. A nossa caminhada neste mistério é tornarmo-nos capazes de, ao escutar as palavras dos Profetas, dos Evangelistas ou da Igreja, escutarmos o próprio Logos eterno de Deus, que se nos tornou acessível em Jesus Cristo. São João resume assim toda a aventura da Palavra, na Igreja: “E o Verbo faz-se carne e habitou entre nós, e nós vimos a sua Glória, glória que recebe de seu Pai, como Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo. 1,14). Depois da Encarnação da Palavra eterna, em Jesus Cristo, ouvir Deus é sempre ouvir o seu Filho, escutar Deus é sempre escutar Jesus Cristo.
É por isso que a primeira resposta que Deus espera do seu Povo, é que O escute, que acolha a sua Palavra. Antes de anunciar é preciso escutar.
Uma Palavra actual
Se o cristianismo fosse só “uma religião do Livro”, o esforço da Igreja limitar-se-ia a analisar o texto para ver o que Deus disse ao seu Povo, nas diversas etapas da sua história. Mas nós acreditamos que a Palavra de Deus é actual, Ele continua a ser um Deus em diálogo com o seu Povo, a conduzi-lo pela sua Palavra em cada momento e circunstância da história. Se acreditamos que Deus continua a falar-nos, a atitude da Igreja tem de ser outra: a da escuta, coração aberto para escutar agora o que Deus diz à Igreja, que é o seu Povo.
Como é que Deus nos fala hoje
3. Para bem escutarmos a Palavra do Senhor, temos de ter uma consciência clara dos modos como Deus fala hoje ao seu Povo e a cada um de nós.
Ele fala-nos pelo seu Filho Jesus Cristo. Palavra eterna de Deus fez-se Homem e ficou connosco. N’Ele, Deus diz-nos tudo e sempre o que tem para nos dizer. Na encarnação do Verbo “a Palavra não se exprime primariamente num discurso, em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria Pessoa de Jesus. A sua história, única e singular, é a Palavra definitiva que Deus diz à humanidade. Daqui se compreende por que motivo, no início do ser cristão não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte”[4].
Na escuta amorosa da Palavra que Deus dirige hoje ao seu Povo, é essencial a relação com a Pessoa de Jesus nas suas diversas expressões: a adoração, a celebração da Eucaristia, as suas palavras que nos foram transmitidas pelos Evangelhos. Só na relação com Jesus Cristo se escuta a Palavra do Pai. Cristo é, para todos os tempos, a Palavra do Pai.
Desde que esteja garantida esta relação de fé e de amor com a Pessoa de Jesus, a Igreja pode escutar a Palavra de Deus através de outros meios e caminhos. No Sínodo “falou-se justamente de uma sinfonia da Palavra, de uma Palavra única que se exprime de diversos modos, um canto a várias vozes”[5]. A unidade desta sinfonia é a Pessoa de Jesus, Palavra eterna de Deus, a Quem devo escutar numa relação de fé e de amor”. A própria expressão Palavra de Deus indica a Pessoa de Jesus Cristo, Filho eterno do Pai que se fez Homem”[6].
Nesta sintonia de vozes, através das quais Deus nos fala por Jesus Cristo, avulta a Sagrada Escritura que se tornou linguagem de Jesus Cristo. Só n’Ele e por Ele a Escritura se torna Palavra de Deus hoje. Santo Ambrósio afirmava que “o Corpo do Filho é a Escritura que nos foi transmitida”. “Deus através de todas as palavras da Escritura diz só uma Palavra, o seu único Verbo em que se diz inteiramente a Si Mesmo”. E Santo Agostinho afirmava: “lembrai-vos de que o discurso de Deus que se desenvolve em todas as Escrituras é um só, e um só é o Verbo, que se faz ouvir na boca de todos os escritores sagrados”[7].
Outras vozes que nos podem ajudar, hoje, a ouvir o que Deus nos diz em Jesus Cristo, são a maneira como em todos os tempos a Igreja escutou o Senhor, lendo as Escrituras. É a fé da Igreja, conduzida pelo Espírito, em todos os tempos, na escuta da Palavra de Deus. A Exortação Apostólica afirma-o claramente: “Em última análise é a Tradição viva da Igreja que nos faz compreender adequadamente a Sagrada Escritura como Palavra de Deus”[8].
E, finalmente, podemos escutar o que Deus nos diz hoje em Jesus Cristo, contemplando a Criação, se acreditarmos que, por Ele, foram feitas todas as coisas (cf. Jo. 1,3), que Ele é o primogénito de toda a criação (cf. Col. 1,15) e que todas as coisas foram criadas por meio d’Ele e em vista d’Ele (cf. Col. 1,16). É possível escutar o Criador, observando as criaturas. Aí a sinfonia alarga-se à imensa beleza da variedade das criaturas. Como afirmava São Boaventura “toda a criatura é Palavra de Deus porque proclama Deus”[9].
Dialogar com Deus com as próprias Palavras de Deus
4. Escutar, hoje, a Palavra de Deus é aceitar entrar no diálogo para que Ele nos convida e atrai e, portanto, mergulhar na experiência da comunhão que se exprime, em Igreja, na relação com Jesus Cristo.
Entrar neste diálogo está acima das nossas forças humanas. Só o Senhor pode pôr nos nossos lábios e no nosso coração as palavras que havemos de responder à Palavra do Senhor. A nossa palavra com que respondemos à Palavra de Deus é um dom do próprio Deus, suscitada em nós pelo Espírito Santo. Se tentarmos responder a Deus só com as nossas palavras humanas, nunca entraremos verdadeiramente nesse diálogo, talvez nem cheguemos a escutar a voz do Senhor.
Voltamos à importância da Sagrada Escritura. Através dela, Deus não só nos fala hoje pelo seu Filho Jesus Cristo, mas põe na nossa boca as palavras com que devemos responder à Palavra viva de Deus, porque a Sagrada Escritura tantas vezes sugere a resposta que Deus deseja. Cristo não é apenas a Palavra definitiva mas é a resposta perfeita à Palavra eterna do Pai. No seguimento de Jesus Cristo aprendemos a responder a Deus. Se aprendermos a encontrar na Sagrada Escritura as nossas respostas à Palavra que Deus nos dirige, interiorizamos a nossa aceitação dos textos sagrados como Palavra de Deus, espontaneamente repetimo-los e memorizamo-los, de modo a transformarem-se espontaneamente na nossa resposta a Deus que nos fala. A Sagrada Escritura é como uma língua que se aprende e se torna parte de nós, da nossa compreensão e da nossa expressão.
Escutamos e respondemos à Palavra de Deus, movidos pelo Espírito Santo. Participamos mais uma vez, no dinamismo trinitário de comunhão das Pessoas Divinas. O facto de Deus Pai nos falar, através do seu Filho, o seu Verbo, acontece no Espírito de amor que brota da relação do Pai e do Filho. Sempre que nos fala, pelo seu Filho, Deus comunica-nos o seu Espírito e só Ele nos permite escutar e responder. “A Palavra de Deus exprime-se em palavras humanas, graças à obra do Espírito Santo. A missão do Filho e do Espírito Santo são inseparáveis e constituem uma única economia da salvação”[10]. O Evangelista São João sublinha esta acção do Espírito Santo na escuta da Palavra. É Ele que ensinará os discípulos, recordando-lhes tudo o que o Senhor disse; é Ele que conduzirá os discípulos à plenitude da verdade (cf. Jo. 14,26; 16,13).
Escutar a Palavra em Igreja
5. A Igreja, Povo do Senhor, é o verdadeiro interlocutor de Deus. É ao seu Povo que o Senhor fala e se revela; é dele que espera uma resposta, é a Igreja que é enviada a anunciar a Palavra, participando da própria missão do seu Senhor.
O equilíbrio entre a escuta pessoal da Palavra, e o acolhimento que da mesma Palavra faz a Igreja, é um equilíbrio difícil de conseguir. Depende, fundamentalmente, da inserção de cada cristão na comunhão da Igreja, o que o leva a rejeitar qualquer interpretação da Palavra que não coincida com a da Igreja. De facto, ao longo dos séculos, sempre que cristãos, individualmente ou em grupo, pretenderam escutar a Palavra sem estarem em comunhão com toda a Igreja, correram o risco de escutarem o que gostariam de ouvir e não o que Deus tem para lhes dizer.
A Exortação Apostólica recorda-nos que “a relação entre Cristo, Palavra do Pai e a Igreja (…) é uma relação vital, na qual cada fiel é, pessoalmente, convidado a entrar”[11]. A escuta da Palavra tem de ser cultivada simultaneamente com a vivência da Igreja como comunhão, com Jesus Cristo e por Ele, com a Santíssima Trindade. “A contemporaneidade de Cristo com o ser humano de cada época realiza-se no seu Corpo, que é a Igreja”[12].
Ao longo dos séculos, apesar das dificuldades do tempo e da história, foi a Igreja, esse “nós” que é o Povo do Senhor, que escutou bem a Palavra do Senhor. “Mestra da escuta, a Esposa de Cristo repete, com fé, também hoje: falai, Senhor, que a vossa Igreja vos escuta”[13].
A escuta da Palavra, por cada cristão, faz-se aderindo à maneira como a Igreja escuta a mesma Palavra, aprofunda-se rezando com a Igreja, transforma-se em missão, anunciando-a com a Igreja e em nome da Igreja. É preciso que em cada cristão que escuta a Palavra, seja a Igreja que a escuta.
Escuta da Palavra e Nova Evangelização
6. A renovação da evangelização tem o seu destino ligado ao modo como toda a Igreja e cada cristão escutam, hoje, a Palavra do Senhor. “A Igreja é uma comunidade que escuta e anuncia a Palavra do Senhor (…) só quem se coloca primeiro à escuta da Palavra é que pode depois tornar-se anunciador”[14]. É que a mensagem central da Palavra é a manifestação do infinito amor de Deus pelos homens, expresso em Cristo, de modo especial na sua oferta pascal. A evangelização é sempre o anúncio sincero e experimentado deste infinito amor de Deus. A Nova Evangelização precisa do ardor e da comoção de quem se sentiu tocado por essa Palavra que Deus nos diz hoje, sempre, em cada dia da nossa vida.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
[1] Verbum Domini (VD), nº 6
[2] VD, nº 5
[3] VD, nº 7
[4] VD, nº 11
[5] VD, nº 7
[6] Ibidem
[7] VD., nº 18
[8] VD., nº 17
[9] cf. VD., nº 8
[10] VD., nº 15
[11] VD., nº 51
[12] Ibidem
[13] Ibidem
[14] Ibidem